Se eu tivesse de contrapor o tempo escatológico ao tempo vulgar e imanente de todos os dias, eu definiria essa oposição por um exemplo. No tempo mundano, perguntamos a um sujeito na rua: Que horas são? No tempo escatológico, indagamos , na mesma rua e ao mesmo sujeito: Você já salvou a sua alma? É este tempo Absoluto, este tempo estigmatizado unicamente pelo limiares do Fim e do Princípio, tempo vertical e interpolado por todas as dimensões subjacentes às Escalas da Ordem e da Eternidade, que Handel representa em sua música.O profetismo, dom e opróbrio característico deste tempo, é o limiar de sua experiência histórica ( se História há). Apreendemos ( e somos apreendidos por) os ultrasons, as sub-ressonâncias, os apelos intersticiais, as finíssimas cicatrizes do Sempiterno. Aqui, nada de meio-termo ou grau: enterrados no Eterno até os ossos, acumpliciamo-nos com os atributos dos anjos e dos mitos primevos: a intangibilidade, a implausibilidade, a imarcescibilidade e a inelutabilidade de tudo o que jaz em nós, desde sempre e para além de nós. ( Excelsus Dominus).
Eis a grande descoberta de Handel- que são os óbulos do vidente às suas vozes interiores: Com Rauco Mormorio, Dull Delay in Piercing, Scenes of Horror. Esqueçam o verso seguinte: For now is Christ risen from the dead, the first fruits of them that Sleep; o que deve ficar- o que resta- é o início do versículo: esta concupiscência da carne estagnada, que aspira à podridão e ao caos como o invólucro quintessencial da Contemplação de Deus.
Esqueçam também o que disse acima; ouçam apenas a trompa de caça Maureen Forester, contralto magnífica. Nela, a profundidade e amplidão abissais –assim como o preciosismo, a untuosidade, o esplendor fúnebre e o o entusiasmo cromwelliano da Puritana - da música sacra de Handel encontram uma rival à altura.
No link, Lynne Dawson, modesta e circunspecta como um querubim, canta I know that my redeemer Liveth.
http://www.youtube.com/watch?v=qtU1c5JZf0k
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
sexta-feira, 2 de janeiro de 2009
Puccini, o impressionista
Muitos chatos, geralmente tarados por Verdi, dão de ombros: Puccini, música menor. Música sentimental burguesa, trinados de cristal e alcova, Sèvres e chá das cinco, etc. Puccini é um impressionista da ópera. Vejamos o sublime Vogliatemi bene, dueto da Madame Butterfly, perversão/ recriação da melodia infinita wagneriana no universo do melodrama estertórico sala-e-cozinha: aniquilação de uma geração inteira no êxtase da hemoptise e da água –furtada. Simulação vertiginosa do espaço imaginário- a face de Jano do teatro social - pelo travesti que o habita, e cuja função é decalcar-lhe os ritos, amplificar-lhe os ritmos, nuançar-lhe a pressão e estimular-lhe o caráter abrasivo e excitante. Em Puccini, vale a regra masoquista: o gozo ou a dor não diferem em natureza, mas na pressão exercida. O estímulo do prazer a meio caminho entre a transgressão e a regra, sua face porosa e intercambiável. No link, Kabaivanska, talvez a mais sublime Butterfly do nosso século e Nazzareno Antinori como um marmóreo Pinkerton na Arena de Verona. Ouçam também a gravação com Callas e Di Steffano, regida por Serafin, talvez uma versão mais exuberantemente “wagneriana” do dueto.
http://www.youtube.com/watch?v=v2oNJRTkonM
http://www.youtube.com/watch?v=v2oNJRTkonM
domingo, 21 de dezembro de 2008
Strauss, a canção do suicídio, Janowitz
Nunca se gritou tanto na ópera quanto Salomé, nunca se arquejou e se gangrenou tão maníacamente a matéria da voz, as margens das coxias e dos tímpanos . Mas nas quatro últimas canções, e sobretudo neste arco debruçado sobre o dorso da dissolução- representada essencialmente no uso adstringente wagneriano- que é Friüling, temos uma nota nova, para além e para aquém do gozo masoquista que é o spleen da decadência; um conjunto de notas, na verdade. Esta nota é exprimida naquela epígrafe- ou epitáfio- que Holderlin apõe a seu Empédocles: No perigo- na dissolução- reside a salvação. Na agonia, o anjo de Friüling encontra a reconciliação. No face a face com os limites, o apaziguamento da vontade, voto schopenhaueriano; na dizimação e na entropia, a expansão cósmica e a luxúria do Nada. Esta face imprevista- ma non troppo- da decadência de Strauss é o suspiro do moribundo- suicida- perante o mundo que finalmente se digna a abandoná-lo. No link abaixo, Margaret Price numa versão menos cósmica e mais soturnamente acadêmica das obras-primas de 1948. Mas tentem ouvir Janowitz cantando isso e entenderão o significado da expressão canto do cisne.
http://www.youtube.com/watch?v=P1AvXOXhjmY
http://www.youtube.com/watch?v=P1AvXOXhjmY
sábado, 6 de dezembro de 2008
No link, la Bartoli canta ( só canta, como se já não bastasse! ) a sublime ária de concerto Ch’io mi scordi di te.
http://www.youtube.com/watch?v=AqK_gbnRmyY
http://www.youtube.com/watch?v=AqK_gbnRmyY
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